Eucaristia e crise do Matrimônio (segunda Parte)

2015-08-22
A reflexão do Cardeal Ennio Antonelli em vista do próximo Sínodo

 

Bruno Esposito, OP[1]


Então o Autor analisa o tema da indissolubilidade do matrimônio sacramental, rato e consumado, sobre o qual nem sequer a Igreja tem qualquer poder, e que constitui o fundamento da pastoral chamada a evitar tanto o imobilismo quanto a mudança, mas, ao mesmo tempo, sempre mais comprometida a uma fidelidade criativa (cf. p. 45-54). Em seguida, examina o significado e o valor do amor, da indissolubilidade e da validade do matrimônio sacramental. Neste contexto, faz referência — e infelizmente não desenvolve — ao papel da fé para a validade do sacramento do matrimônio, tema também tratado durante a III Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos (cf. Relatio Synodi, 48). Segundo o nosso humilde parecer, este aspecto é o único que o Autor deveria ter eventualmente desenvolvido, tendo em vista a confusão que há hoje a esse respeito.

Com efeito, parece-nos que pensar em considerar a fé como critério para estabelecer a validade de um matrimônio sacramental vai contra a realidade objetiva e, de modo particular, criaria mais problemas do que aqueles que pretende resolver. Por estas razões, parece-nos oportuno dizer aqui algo a este respeito. Em particular, introduzir uma específica forma ad validitatem inerente à vontade de se casar no Senhor (e, portanto, uma forma litúrgica relativa à fé pessoal dos nubentes), revela-se absolutamente prejudicial à solução do problema doutrinário, caso a fé seja objetivamente ad substantiam do sacramento do matrimônio, pois não se trata somente de um problema de validitas jurídica, mas de uma verdadeira substância sacramental, sobre a qual, contudo, a Igreja não tem qualquer poder. De fato, a introdução de ulteriores requisitos jurídicos ad validitatem levaria à incontestável consequência do aumento exponencial dos matrimônios objetivamente nulos, e traria, por conseguinte, o problema pastoral de fazer muitos casais viverem no pecado. Também aumentariam significativamente os casos de matrimônios de validade incerta, com consequente dever para a Igreja de esclarecer os dois cônjuges — mais ainda em caso de crises matrimoniais — se eles estão efetivamente casados ou não no Senhor. Ou, por fim, quando os esposos não desejassem refazer, faltando a fé, a nova fórmula imposta, e, portanto, se preferissem não se casar coram Ecclesia, se restringiria o seu ius connubii, pelo simples fato de não possuírem uma fé madura, o que nega aos batizados uma instituição de direito natural, plenamente reconhecida pela Igreja inclusive aos não batizados na forma de matrimônio legítimo.

Em todo caso, o presente texto do Card. Antonelli permanece claro e útil a todos os que, como nos recorda o Apóstolo Pedro, a estar “sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pede. Fazei-o, porém, com mansidão e respeito” (1Pd 3, 15-16). Sobretudo neste período que nos separa da celebração da próxima XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, chamada a apresentar a “fisiologia” da família, e após a precedente III Assembleia Geral Extraordinária, que havia tratado das — se é que se pode dizer — “patologias”, é uma necessidade e um dever conhecer o que constitui o coração do anúncio evangélico sobre a família. Tomar consciência do projeto de Deus que, seguramente, poderá hoje se revelar quase como uma utopia, mas que, por fim, se reconhece e se descobre ser o anseio mais sincero, mesmo quiçá escondido e confuso, de todo homem e mulher. O Autor contribui para superar a ideia infundada, mas infelizmente muito difundida, de uma Igreja que afasta alguns de seus filhos, de uma Igreja que marginaliza de modo hipócrita e privada de misericórdia, e ajuda a entender que quando Deus pede é para o nosso verdadeiro bem e que o verdadeiro amor jamais dispensa o sacrifício e o perdão.  Esta foi a profunda e íntima convicção dos cristãos dos primeiros séculos (cf. p. 60). O nosso desejo é que esta síntese do Cardeal Antonelli ajude a todos a redescobrir a riqueza da mensagem cristã sobre a família e, sobretudo, constitua um válido instrumento para evitar aquela triste confusão provocada pelo tal “Sínodo midiático”, que é algo bem diverso do real (v. entrevista do Cardeal Baldisseri concedida à ZENIT, em 25 de junho de 2015). O povo de Deus, e sobretudo os seus ministros e pastores, têm necessidade de certezas e não de discussões que geram falsas e divergentes expectativas que minam em seus fundamentos a própria missão da Igreja. De fato, é necessário ter presente o que tem ocorrido após o último Sínodo Extraordinário, e como foram deturpadas pela mass media algumas discussões sobre determinados argumentos apresentados e como muitos sacerdotes e fiéis os têm recebido.  Se um cardeal durante o Sínodo teve que convocar o vigário judicial, que espalhava que já não mais era preciso apresentar os libelos para introdução de uma a causa de declaração de nulidade do matrimônio; se pessoas homossexuais que coabitam creem que o seu comportamento já não é mais pecado; se um pároco diz aos divorciados recasados que podem tranquilamente se aproximar da Eucaristia; isto é sinal de que algo deve ser revisto quanto ao modo de comunicar e informar, ao passo que isso não significa, certamente, julgar as intenções e os propósitos de ninguém, mas ser realistas e fazer o melhor para o bem do povo de Deus.

Com efeito, a Igreja é fiel à missão confiada por Cristo na medida em que está comprometida sem reservas em oferecer a Palavra de Deus aos homens. Um ministério certamente comprometido e delicado requer uma contínua atenção e capacidade de discernimento, uma pronta disponibilidade para o diálogo, e paralelamente atualizar a verdade de Deus, que não muda, a fim de encarná-la nas diversas culturas para facilitar o recebimento e a compreensão (cf. Mc 6, 11). Em todo este compromisso no anúncio da única verdade que de fato nos torna livres (cf. Jo 8, 32), os pastores da Igreja jamais deverão, em todo caso, se iludir em receber as boas graças do mundo (cf. Jo 15, 18-21), mas humildemente deverão sempre se sentir administradores das coisas de Deus (cf. 1 Cor. 4, 1-2) e chamados por Cristo a ser como o sal que dá verdadeiramente gosto à vida (cf. Mt 5, 13; Ef 4, 1-24), conscientes do dever de sempre e em toda parte ser testemunhas acreditadas que convidam a partilhar a alegria e a felicidade de ser cristãos para e com os outros, propondo-lhes a livre, consciente e responsável escolha do projeto original de Deus sobre o matrimônio com o mesmo espírito, respeito e comportamento do Senhor: “Se queres entrar na vida” (Mt 19, 17; cf. também Mc 6, 7-13) este é o único e verdadeiro matrimônio.


[1] Cf. Antonelli, Ennio. Crisi del Matrimonio & Eucarestia. Milano 2015, 72 p., ISBN 978-88-8155-654-0. Publicado originalmente em Zenit (2/8/2015). Trad. do italiano: Inácio de Araújo Almeida, EP